Numa terça feira dessas que você torce para acabar já no início da tarde, estava eu indo ao consultório, quando ao ingressar no elevador uma senhora muito simpática olhava para mim com curiosidade. Então com delicadeza perguntou quem eu era e qual a minha especialidade. Indiquei o meu nome no bolso do avental e, prevendo as costumeiras fisionomias de confusão, o pronunciei lentamente para evitar repeti-lo. Somente depois falei que era oncologista (pior é quando digo que sou médico de “Câncer”), quando a dama assustada exclamou:
“Deus me livre! não quero lhe conhecer e nem quero consultar com o senhor”
A simpática mulher depois de dizer isso, agiu como se tivesse aparecido um fantasma e parecia não querer mais estar no elevador. No seu destino saiu menos alegre do que na minha chegada.
Sei que ela não quis fazer qualquer tipo de alusão pejorativa da minha pessoa e que em outras circunstâncias talvez nem trocássemos palavras, mas estou ciente de que o simples fato de mencionar a palavra câncer parece causar arrepios nas pessoas, além de um bouquet de desagradáveis sensações serem ativados nos meus interlocutores.
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Esta cena faz parte do matiz que dá cores à profissão do cancerologista clínico. Quando iniciei minha residência não imaginava a difusa aversão que existe em relação aos oncologistas, até porque eu ainda era muito jovem e estava pouco familiarizado com o contexto do paciente neoplásico. Recordo que nos meus 26 anos, quando mergulhei na residência, eu era muito inexperiente, mas interessado em absorver tudo. De lá para cá, aprendi muitas coisas, vivenciei cenas tristes e felizes, cômicas e outras perigosas. Mas o mais importante é que sinto ter escolhido a especialidade perfeita, apesar do que muitos ainda me perguntam: “Por que escolheste oncologia?”
A vida dos médicos está sempre na gangorra das emoções humanas. Não podia ser diferente com os oncologistas, mas lidamos com uma taxa de frustração um pouco maior, pois o conceito social do câncer confere quase que automaticamente uma atribuição pessimista e negativa. Isto é tão tangível, que para muitos as primeiras consultas começam como uma batalha perdida. Há outros sim, que vêm guerreiros e com tudo já combatem seus tumores! E estes, precisamos carregar menos, pois estão armados psicológica e fisicamente para o embate com as suas doenças. Mas todos precisam do suporte que os oncologistas dão. Daí que a laboriosa e delicada função da primeira consulta sempre é ter o tato suficiente para que o paciente não saia decepcionado. Talvez meu único pecado esteja em discutir sobre o tabagismo com o doente. Peco por hostilizar o paciente a parar de fumar, mas o faço visando o bem dele (Confesso que já me vi ser rude e me arrependo desta dureza).
A primeira consulta passa pela inevitável necessidade de quebrar o gelo com paciente, para depois esclarecer os por quê, os onde e até onde, os incômodos como e, finalmente, os quais. Quantas dúvidas não vêm ao acaso e muitas vezes nem a metade destas é lembrada? Mas nem sempre temos todas as respostas. O melhor que podemos fazer é aproximar o máximo os pacientes da realidade.
As reações vão da indiferença ao choro inconsolável. É nessa hora que precisamos mostrar que é importante eles esclarecerem cada dúvida. Outros usam a raiva e transferência da culpa e responsabilidade para a equipe médica, como mecanismo de proteção. A todos estes precisamos acolher, dar suporte, entender, permitir seu tempo. É preciso mostrar que sempre há uma luz no meio dessa escuridão em que ele foi deixado, sobretudo quando vivemos numa época de constantes inovações científicas. Estes são alguns dos momentos de maior diversidade sentimental da vida do oncologista, quando um vasto e diverso universo de pessoas cruza os consultórios a procura de ajuda e soluções.
As famílias fazem parte da prioridade nº 2. Muitas vezes é mais difícil para quem acompanha os doentes, lidar com todas as vicissitudes da doença. A família é coprotagonista essencial na história. A falta de estrutura e suporte compromete o bom andamento. Somos seres medularmente sociais, onde a interação é condição sine qua non para a existência e os pacientes apresentam uma necessidade superlativa de contato ao enfrentarem seus diagnósticos.
E ainda precisamos assumir a culpa dos quase que inevitáveis efeitos colaterais de tratamentos que ainda são os principais representantes da péssima reputação da oncologia. Explicar que eventualmente podemos ter que lidar com estas dificuldades faz parte do processo, mas que nem sempre acontece. O trauma físico e psicológico através do qual o paciente irá ser submetido, é talvez um dos maiores fatores de troca de médicos e procura por segunda opinião, acompanhado das falhas aos tratamentos. Estes dois fatores talvez sejam os mais importantes no tão atual rodízio colecionável de médicos.
Hoje entendo que ser oncologista é ter que lidar com muitos momentos duros, difíceis, mas muitos deles são tenros, lindos, felizes e plenos. Sei que precisamos cultivar a paciência e compreensão. Devemos fazer isso como parte de cada respiração e evitar transferir aos doentes as nossas limitações, já fragilizados por tantas frustrações e tristezas, além de preconceitos e prejulgamentos.
Finalmente penso eu, que minha amável senhora do elevador não precisa ter medo de conversar comigo ou consultar com seu oncologista, pois nossa existência não foi prevista apenas para tratar, mas para educar a prevenir. Se ela seguir as mais elementares e sólidas orientações, não me terá em pesadelos lhe rondando. Está em cada um procurar todas as formas de prevenção. O medo talvez seja de não ser forte e disciplinado o suficiente para se doutrinar e conduzir pelos mais corretos ensinamentos a respeito da prevenção do câncer. Não deixe que os vícios o dominem!
Ser oncologista é uma experiência de vida difícil de ser caracterizada em poucas palavras e complexa de ser vivida numa única existência..