BLOG TRIBUNA MÉDICA - DR. SÖREN 
14-09-2013 - história de victório
14-09-2013 - história de victório

 


Num daqueles sábados bonitos da nossa cidade, o meu celular tocou enquanto entrava no hospital. Era um pedido de avaliação oncológica. Pensei: “porque em pleno sábado? Seria tão urgente?” Fiquei inconformado, pois já tinha muitos pacientes, mas mesmo assim era minha obrigação ver a paciente.

Ao chegar ao posto de enfermagem, fiquei sabendo que fora o Dr. “X” que me chamara para a avaliação. Dei uma rápida olhada no prontuário e fiquei preocupado. Rapidamente pedi informações à enfermeira e como era cedo, a mesma ainda não tinha maiores dados para me repassar. Assim, me dirigi até o pequeno quarto, onde encontrei a paciente deitada no leito e o provável esposo numa cadeira. O estudo e a prática da medicina nos ajudam a elaborar rápidas conclusões com poucos elementos, mas o que me esperava naquela situação, a vida inteira não tinha me preparado. A paciente apresentava um abaulamento na altura do abdômen. Ao descobrir os lençóis, um abdômen protuberante evidenciava uma gestação a meio caminho. Isso mesmo: a paciente estava grávida com menos de 26 semanas e jazia no leito, paraplégica, por causa de uma lesão tumoral na coluna torácica que comprimia a medula vertebral. Parei, cumprimentei e indaguei a paciente sobre os acontecimentos.

A paciente, cujo nome não é lembrado e nem precisa, era uma mulher carente, de paupérrima condição social e econômica. Vinha tentando atendimento em várias cidades do nosso estado, mas apenas o Dr. “X” aceitara o caso. A paciente apresentava a paralisia havia mais de um mês e não tinha mais nenhuma sensibilidade da metade do abdômen para baixo. Tinha feito exames da coluna que mostravam uma fratura de algumas vértebras torácicas, fator que causara a paraplegia. Fizemos outros exames e evidenciamos um enorme tumor no pulmão e após conversar com a paciente e esposo, confirmei que ela era uma empedernida fumante e que mesmo grávida e paraplégica, continuava a fumar. Expliquei a ela que o motivo dela estar paralisada era uma metástase na coluna de um câncer no pulmão, causado pelo cigarro.

Foi somente depois que tive a sensação de não saber para onde correr! Era uma mulher grávida e com um câncer avançado! O que fazer? Nem eu ou os obstetras e pediatras sabíamos como resolver tamanho problema colocado em nossas mãos. Sentimos a impotência de sermos simples humanos. Após considerar as alternativas, optamos por aguardar um par de semanas, pois os pulmões da criança ainda não estavam amadurecidos o suficiente para um parto precoce. Era um caso de extrema dificuldade, pois enquanto a mãe estava paralisada e nada mais podia ser feito pela paralisia, o tumor poderia continuar crescendo e piorando a situação dela. Por outro lado se induzíssemos o parto, o neném poderia morrer por falta de condições respiratórias. Sabíamos que as possibilidades de melhora da mãe eram muito limitadas, pois além da gravidade da doença ainda continuava a fumar e o tumor já era metastático.

Assim cuidamos da paciente durante duas semanas, mas na terceira a nossa mãe sofreu uma embolia pulmonar maciça, tendo que ser levada, grávida ainda, até a UTI. Por causa dos riscos inerentes a embolia para com a gestante, tivemos que explicar aos pais sobre a necessidade de induzir o parto. Pediatras e obstetras então trouxeram “Victório” a este mundo. Victório teve que ser levado até um dos leitos da UTI neonatal, devido à fragilidade de seus pequenos pulmões.

Passados os procedimentos, a nossa doente voltou para a UTI, conseguiu resolver a embolia pulmonar e depois liberada para o conforto do quarto e enquanto isso, Victório lutava diariamente por se manter vivo, respirando com ajuda de aparelhos. 

Victório estava com pouquíssimo surfactante nos pulmões; eles não tinham amadurecido ainda o suficiente para respirar com facilidade e provavelmente o fato da mãe ser tabagista e fumar durante a gravidez, tornou ainda pior o quadro para ele. Todos os dias eu dava uma rápida passadinha para ver o pequeno guerreiro e depois atualizava a minha paciente sobre as condições do seu filho. Os pais, muito pobres, não tinham condições nem de comprar fraldas. Victório intercalava períodos de infecções respiratórias, com pausas de melhorias, mas nunca fora do respirador artificial. Eu o admirava na sua luta por viver. Muitos adultos desistem rapidamente. Ver aquele pequeno com vida, apesar d as dificuldades pelas quais condicionaram sua existência, me fez repensar sobre muitos aspectos da minha própria vida. 

Minha obrigação era apenas com a mãe dele, mas me sentia responsável por ter trazido uma criança frágil a este mundo. Creio que fiquei sensibilizado ao perceber uma família sem estrutura, com pais sem senso de responsabilidade por mais uma vida a cuidar. Mas não podia fazer nada por ele. Enfim a mãe doente obteve alta e foi encaminhada ao serviço de oncologia de sua região, pois por questões administrativas e burocráticas não podia ser tratada na nossa cidade. Enquanto isso na UTI neonatal, depois de mais de um mês, Victório teve que ser levado a um hospital de Porto Alegre por complicações pulmonares, que não podiam ser tratadas aqui.

E O DESTINO DE VICTÓRIO?

Depois disso, nunca mais soube de Victório e até hoje me lembro daquele belo lutador, assim como guardo uma linda fotografia dele nas minhas memórias. Às vezes me estremeço de pensar no que terá acontecido com ele, neste nosso caótico mundo. Será que ele ainda vive? Ou a sua simples e curta existência serviu apenas para momentos de reflexão dos que se envolveram com seus cuidados?

A vivência deste caso me fez ficar cada vez mais ríspido com a continuidade do ato de fumar em portadores de câncer. Muitas vezes sou mal interpretado, pois gero sentimentos de culpa neles. Mas, quem se beneficia desta puxada de orelha senão o próprio paciente? E ainda tem os que defendem o cigarro! Vemos ainda tantas mulheres grávidas que fumam durante as suas gestações e os seus filhos impossibilitados de se manifestarem. É importante orientar cada mulher grávida a interromper imediatamente o ato de fumar, pois muitos Victórios ainda poderão sofrer o destino do nosso. 

Infelizmente o que se vê nas últimas décadas nos países em desenvolvimento é investimento em soluções “band-aid” e nada em educação básica. Famílias, como a da nossa história, são eternamente dependentes do sistema. Victório nasceu numa situação muito adversa, em todos os aspectos: social, físico, educacional e de humanidade. Mudemos o nosso mundo educando e respeitando!

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